É possível conciliar a vontade de fazer o bem com a necessidade de ganhar dinheiro? Como os negócios sociais e demais empreendimentos que possuem um compromisso com a geração de impacto socioambiental positivo pagam suas contas no final do mês? E, afinal, de onde elas tiram os recursos necessários para escalar e transformar o mundo quando muitas vezes o seu principal usuário não possui capacidade de pagamento para financiar a solução? Essas e outras perguntas têm relação direta com a criação de modelos de receita para negócios de impacto.
A necessidade de encontrar um modelo de receita sustentável é um desafio com o qual você já se deparou em algum momento. Certo? Mesmo se você está apenas começando a desenvolver sua ideia de iniciativa com propósito para melhorar sua comunidade, ou se já possui uma solução validada e busca uma maneira de escalar seu modelo e multiplicar seu potencial de transformação.
Sendo assim, neste artigo, vamos discutir o conceito e a lógica por trás do que significa ter um modelo de receita sustentável no contexto dos negócios de impacto. Além disso, vamos apresentar algumas alternativas e exemplos de como este mecanismo pode contribuir para melhorar a sociedade e o ambiente em que vivemos.
Mitos e verdades sobre modelos de receita
Você provavelmente já ouviu a frase “Quem faz o bem está cumprindo uma missão social e não precisa ser pago por isso”, ou já pensou “Se eu começar a ganhar dinheiro com meu negócio, as pessoas vão achar que eu estou me aproveitando da dor delas” e mesmo “Eu tenho uma organização sem fins lucrativos, isso significa que eu não preciso gerar receita.”
São muitos os mitos e inverdades que correm entre as pessoas que atuam no universo das organizações de impacto social, ou o famoso “Setor 2.5”. Quando analisamos mais de perto, percebemos que na maioria das vezes, o desafio de encontrar um modelo de receita que funcione para cada organização é, antes de mais nada, um desafio de ordem emocional e subjetiva.
É comum o empreendedor ou empreendedora social acreditar, mesmo que de maneira inconsciente, que a ele (e seu negócio) não são merecedores de ganhar dinheiro. Tal crença limitante pode ter diversas causas, seja pelo viés de atuação da organização ao atuar com pessoas em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica, ou de uma visão herdada de modelos organizacionais do terceiro setor, ancorados em uma cultura de doações e limites orçamentários institucionalizados.
Desafios para empreendedores sociais ao tentarem conciliar receita e impacto
Ann Mei Chang, autora do livro Lean Impact: How to Innovate for Radically Greater Social Good, explica no seu livro e em suas palestras os benefícios positivos que somos capazes de colher quando “viramos a chave” de uma mentalidade doutrinada para pensar em caixas de projetos delimitados por um orçamento pré-definido, e passamos a pensar na engrenagem da entrega de valor como um “motor” de geração de impacto positivo.
Para que possamos fazer isso, o primeiro passo é colocar em suspensão todas as crenças preconcebidas que temos acerca do papel do dinheiro e seus derivativos no universo dos negócios de impacto. Todas aquelas crenças limitantes que consciente ou inconscientemente consideramos “verdades absolutas” sobre o papel do capital precisam ser questionadas.
No nosso idioma, o português, enfrentamos uma camada extra de complexidade, pois em muitos casos nossa própria linguagem pode nos levar a um entendimento negativo desta temática. A palavra “lucro”, por exemplo, derivada do latim, tem a mesma origem que a palavra “logro”, uma conotação negativa relacionada ao ato de tirar proveito de determinada situação ou ter vantagem às custas de alguém.
No entanto, na prática de quem empreende um negócio ou projeto social, o dinheiro não só deveria ser algo muito bem-vindo, como é extremamente necessário. Dentro do sistema econômico vigente, sem este recurso econômico não haveria empreendimento capaz de se sustentar no longo prazo. Ou seja, pagar as contas no final do mês ou reinvestir no crescimento e aperfeiçoamento da sua tecnologia ou serviço para impactar a vida de mais pessoas.
5 principais desafios
Diante disso, listamos 5 desafios que consideramos os principais para empreendedores sociais ao tentarem conciliar receita e impacto.
- Resistência ou pouca familiaridade com dinheiro
- Beneficiários das soluções muitas vezes não são os clientes pagantes
- Segmentos com necessidades e capacidades de compra distintas
- Meios e canais de pagamento também precisam ser construídos
- Custo das engrenagens de operação podem ser muito altos e proibitivos
Como pensar o dinheiro de um jeito diferente?
O segredo é pensarmos no dinheiro não como um “mal necessário”, mas sim como um recurso-chave. Um fluxo de energia que, se canalizado na direção e no formato certos, pode transformar qualquer ideia em uma máquina de geração de prosperidade.
Em uma analogia simples, imagine o seu empreendimento social como uma caixa d ‘água, aberta no topo e com uma torneira na base. Esta água é capaz de abastecer os lares de algumas famílias. Se a água escoar da caixa em uma velocidade mais alta do que somos capazes de abastecê-la, logo ela ficará vazia e não servirá mais ao seu propósito.
No entanto, se conseguirmos pensar em uma maneira de coletar e bombear a água da chuva para dentro da nossa caixa, logo ela ficará cheia e precisaremos de uma caixa maior ou de um sistema de caixas integradas para abastecer cada vez mais famílias.
No universo dos negócios de impacto, o dinheiro é a água que flui pelos empreendimentos. É o mecanismo que precisamos desenvolver para mantê-la sempre cheia e abundante, o que chamamos de modelo de receita. Modelo de receita tem tudo a ver com modelo de negócio, mas é importante não confundir estas definições.
Modelo de negócio x Modelo de receita
O modelo de negócio descreve a lógica de como uma organização cria, entrega e captura valor. Isso envolve uma série de elementos que vão desde a definição do problema que o empreendimento busca resolver, os parceiros com os quais você irá se conectar até a estrutura de custos para viabilizar o desenvolvimento e entrega da solução proposta.
Já o modelo de receita é um dos elementos do seu modelo de negócio. Ele descreve a estratégia e os mecanismos que você irá utilizar para ganhar dinheiro, ou seja, para gerar receita com o seu produto ou serviço, e é composto por uma ou mais fontes de receita juntamente com os recursos necessários para viabilizar cada uma delas.
Encontrar o modelo de receita certo tem tudo a ver com ser capaz de entregar e capturar valor para a pessoa certa, ou seja, para um cliente pagante.
Alguns exemplos de modelos de receita que provaram ser um sucesso
O modelo de receita vai muito além do simples “B2B ou B2C”. Enquanto estas siglas se popularizaram no universo dos negócios inovadores e startups, e são muitas vezes utilizadas como sinônimos para modelo de receita, elas apenas comunicam de maneira muito superficial o indicativo se a solução que seu negócio está desenvolvendo está mais direcionada para consumidores finais pessoas físicas (C, de customer), ou para empresas (B, de business).
No entanto, definir um modelo de receita requer um pouco mais de atenção e detalhe. Listamos abaixo uma série de tipos de modelos de receita mais famosos que podem ajudar você a se inspirar e construir sua própria estratégia de geração de dinheiro para seu negócio. Confira!
Venda direta
Talvez o mais comum e conhecido. O modelo da venda direta é quando você gera receita a partir da venda de um produto ou serviço diretamente para um cliente, seja ele uma pessoa física ou jurídica. É o “lugar comum” da geração de receita e por onde geralmente os empreendedores tentam começar suas experiências de ganhos monetários. Serve para muitos tipos de negócio, desde a venda de quentinhas até consultorias ambientais. De um lado você oferece uma solução e do outro o cliente paga para obtê-la.
Taxa por transação
Modelo que se popularizou muito com o advento das vendas on-line, dos aplicativos e plataformas estilo marketplace, em que é cobrado do usuário uma porcentagem ou um valor fixo pela transação proporcionada pelo empreendimento. É o caso de quando o lojista paga uma taxa da sua venda para a empresa que opera o sistema de crédito de pagamento ou quando pagamos uma porcentagem para o aplicativo de aluguel de imóveis temporários que é acrescido ao valor do aluguel em si.
Alguns negócios de impacto estão inovando neste modelo de receita ao oferecerem para seus usuários e clientes taxas abertas, personalizadas e de contribuição voluntária. É o caso do sistema de pagamentos e vale alimentação Papayas, um dos empreendimentos acelerados pela Semente.
Taxa de uso
Bastante comum entre os empreendedores da economia criativa e colaborativa, a taxa pelo uso é uma forma de gerar receita em cima de um produto, serviço ou tecnologia durável, o qual pode ser utilizado inúmeras vezes por diferentes usuários. O modelo pode ser direcionado para que mais pessoas consigam ter acesso a determinados itens que de outra maneira seriam muito caros para serem adquiridos por um único indivíduo.
O aluguel de bicicletas e carros elétricos compartilhados é, muitas vezes, feito neste modelo. Do mesmo modo, para algumas tecnologias de acesso à energia solar, por exemplo, esta pode ser uma alternativa de acesso. Esse é um modelo muitas vezes associado ao de assinatura, de modo a gerar uma recorrência na geração de receita.
Anúncios
Modelo ainda pouco explorado no universo dos empreendimentos sociais, mas que vem ganhando cada vez mais adesão e visibilidade. Especialmente no momento em que cada vez mais empresas e setores estão direcionando sua atenção e recursos para soluções ESG e alinhadas aos princípios da sustentabilidade. O modelo de receita via anúncios se dá geralmente quando o cliente pagante (anunciante) tem interesse em ganhar visibilidade para si ou para sua marca em uma plataforma de alto tráfego e uso de determinado público.
É um modelo interessante para quem tem uma comunidade digital bastante engajada em diferentes canais de mídia, mas que não necessariamente aporta recursos direto na aquisição ou uso da solução. Por outro lado, pode ser bastante complexo, pois o nível de competitividade é grande e para gerar um retorno expressivo requer um volume de usuários bastante elevado.
“Modelo Nespresso”
Este é o caso quando o negócio entrega a solução, geralmente na forma de produto com tecnologia específica, mas a principal forma de geração de receita advém dos ganhos com a manutenção do cliente na utilização daquele produto, seja pela venda de insumos ou de outros serviços complementares. Tal modelo ficou popularmente (e infelizmente) conhecido como “modelo nespresso”, devido ao fato de que o principal ganho neste caso advém não da venda da máquina de fazer expressos em si, mas sim de que após adquiri-la, o cliente torna-se um fiel daquela marca, precisando de forma recorrente adquirir cápsulas específicas com o mesmo fornecedor do maquinário.
Embora este exemplo específico seja bastante desagradável em termos de impacto ambiental, ele é uma ótima referência para negócios que precisam viabilizar a entrega de tecnologias complexas por meio do engajamento de múltiplos stakeholder. Por exemplo, uma empresa que deseja viabilizar uma tecnologia de filtragem para tornar a água potável. Neste caso o equipamento do filtro pode ser financiado ou entregue em comodato para um usuário coletivo, enquanto a receita advém de forma recorrente através de uma pequena taxa para manutenção, limpeza e reciclagem de peças.
Não existe receita de bolo!
Encontrar o modelo de receita certo, ou seja, aquele que vai fazer mais sentido para garantir a sustentabilidade e sucesso financeiro do seu empreendimento é sempre uma questão de teste e validação. Um modelo que pode ter funcionado no passado, diante mudanças de mercado e de contexto, pode vir a se tornar obsoleto e vice-versa.
Nesse sentido, é necessário ter em mente que as engrenagens de geração de receita e geração de impacto precisam estar alinhadas, alimentando o mesmo sistema e girando na mesma direção.
Sair da lógica da “caixa orçamentária limitadora”, como nos provoca Ann Mei Chang, implica em parar de pensar em termos de “quanto custaria para viabilizar o projeto x” e mais em termos de “como eu posso fazer com que o projeto x me ajude a ganhar mais dinheiro, para que eu possa fazer duas, três, mil vezes de x”. O recurso financeiro se transforma em uma alavanca para a geração de impacto.
Em publicação específica sobre a temática, a Sense-Lab com apoio do ICE apresentou quatro modelos para empreendedores que desejam começar a conciliar receita com impacto. São eles:
- Impacto no Cliente
- Impacto na Cadeia
- Como Serviço
- Como Subsídio
Cada um destes modelos de receita possui uma série de variantes e o material definitivamente vale a leitura! Ainda assim, o importante é que não existe uma receita única para a geração de impacto. Cada empreendimento pode gerar resultados positivos para a sociedade e para o ambiente, a partir de sua atuação em diferentes pontos da cadeia de valor em que está inserido.
Modelos de receita: outros exemplos possível
Nem sempre o modelo mais “tradicional” ou conhecido de geração de impacto vai ser o mais indicado para sua organização. Muitas vezes, para que a solução possa chegar até quem ela precisa, e ser financeiramente sustentável, o caminho pode ser um modelo de redução do custo de transação ou de pagamento por intermediário.
Outro formato possível é a estruturação de modelos que valorizem atributos locais, como associações e cooperativas que geram emprego, renda e preservação ambiental para fornecedores de uma cadeia produtiva ou moradores de determinada comunidade.
O modelo de impacto como serviço, por sua vez, pode ser utilizado para gerar receita via pagamento de serviços ambientais ou no formato de “circuito fechado”, em que o impacto gerado pela organização junto aos usuários conecta-se na outra ponta com uma entrega de valor para o cliente pagante e patrocinador da iniciativa.
Esse é o caso do EducaTRANSforma, que capacita pessoas transgêneras para ingresso no mercado de Tecnologia da Informação (TI), ao mesmo tempo em que facilita sua inserção nas organizações patrocinadoras do projeto que passaram pelo seu ciclo de formação em diversidade e inclusão.
Por fim, há ainda o modelo de subsídio cruzado, indireto ou parcial, em que o pagamento por unidade por um cliente viabiliza a entrega de outra em valor menor ou de forma gratuita. Essa é uma das ferramentas utilizadas pela escola de inglês PLT4Way acelerada pela Semente no programa VaiTec.
Por onde começar a pensar modelos de receita para o meu negócio?
Os modelos de receita acima, e muitos outros disponíveis na internet, podem servir como inspiração. Porém, o mais importante é você se perguntar: o que eu posso fazer hoje para alavancar a minha geração de receita com os recursos a meu alcance?
Tenha em mente que o processo de busca por um modelo de receita não acontece da noite para o dia. Além disso, especialmente no universo dos negócios de impacto, existe uma infinidade de matizes e momentos a serem percorridos entre ser uma organização da sociedade civil, sem nenhuma geração de receita própria (que vive apenas de doações), e ser uma empresa puramente comercial.
Se você não sabe ainda por onde começar, deixamos uma dica: comece pequeno, comece agora e aprenda durante todo o processo. Não tente desenvolver um modelo de receita ultra complexo para uma organização que nunca faturou. Experimente fazer uma campanha de financiamento coletivo para testar quem pode vir a ser o seu público pagante.
Tente mobilizar a sua comunidade engajada e descobrir por qual tipo de produto ou serviço eles estariam dispostos a pagar e quais seriam as condições de aquisição possíveis. Vá atrás de parceiros-chave que possam ajudar a viabilizar a entrega e captura de valor de segmentos que você sozinho não consegue atender.
Rode seus testes, aprenda com os resultados e, em seguida, teste de novo e teste melhor. O modelo de receita “perfeito” é aquele que você e seu time são capazes de fazer acontecer o quanto antes.
Sonhe grande. Comece pequeno. Busque impacto incansavelmente.
Ann Mei Chang
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Texto escrito por Luciana Brandão, consultora de Inovação Social da Semente.