Nesse artigo vamos explorar um pouco mais a filosofia do teste de hipótese, importada do método científico para a modelagem de negócios inovadores.
O teste de hipóteses é também princípio norteador de todas as ferramentas de redução de incerteza que compõe as principais metodologias de desenvolvimento desses negócios, como os Canvas (Business Model e Lean), o Customer Development e o Caminho Empreendedor.
“Qual a maior incerteza do seu modelo de negócios?”
Essa é uma pergunta constante nas consultorias de diagnóstico e seleção dos programas que executamos aqui na Semente. Principalmente para negócios nos estágios iniciais do Caminho Empreendedor.
Alguns empreendedores entendem ela como um teste da sua motivação e resiliência, e adotam uma postura quase defensiva, reforçando quão certos e confiantes eles estão que o modelo que eles desenharam vai dar certo.
A verdade muitas vezes é que eles nunca tinham se feito essa pergunta, e não sabem quais incertezas permeiam seu raciocínio.
O que essa pergunta testa é o nível de maturidade e criticidade que o empreendedor tem do próprio negócio, ou modelo de negócio, que está apresentando.
Como já falamos por aqui, a incerteza é inerente aos negócios inovadores o que leva a apenas duas conclusões possíveis no caso do empreendedor super confiante da pergunta anterior: ou todas as incertezas do modelo proposto já foram mitigadas, e, portanto, esse modelo não é um modelo inovador; ou o empreendedor subestimou o mercado no qual ele está entrando e está tratando hipóteses como se fossem premissas.
A inovação na ciência
Como dito anteriormente, o que caracteriza um negócio inovador é o seu alto nível de incerteza. Isso se dá pelo caráter disruptivo da inovação, que explora situações nunca antes observadas, nas quais é difícil prever resultados.
Por sorte, outro campo da atuação humana compartilha essas características, e possui uma filosofia muito eficiente para lidar com a incerteza: a Ciência e o método científico.
Grandes cientistas, previamente às suas principais descobertas, se depararam justamente com ambientes inexplorados e altamente incertos e imprevisíveis, e se apoiaram justamente no método científico para reduzir essa incerteza ao ponto de formularem uma teoria — mais alto grau de validação de um postulado científico.
A Mecânica Clássica, proposta por Newton, funcionava perfeitamente bem, até Einstein se questionar o que acontece com partículas em velocidades próximas à da luz.
Antes de Darwin explorar os mais diversos biomas na expedição do Beagle e perceber o papel do ambiente na evolução das espécies, a noção de espécies fixas e do criacionismo era uma ideia muito forte.
O êxito desses cientistas em questionar o paradigma vigente e propor novas ideias revolucionárias se deve à aplicação do método científico, que é composto por quatro elementos principais:
- Caracterização de um evento: quantificações, observações, medições e dados que descrevem algum fenômeno;
- Formulação de hipóteses: afirmativas, necessariamente falseáveis, que explicitam relações de causa e efeito e buscam explicar o fenômeno;
- Previsão de efeitos: descrição das deduções lógicas das hipóteses formuladas e suas consequências;
- Desenho de experimentos: descrição de testes dos três elementos acima, a fim de coletar novas caracterizações, e validar ou invalidar hipóteses com base na observação ou não das previsões descritas.
Essa ferramenta permite a cientistas pôr à prova cada premissa do encadeamento lógico do argumento proposto, garantindo a consistência necessária ao conhecimento científico. E atrelar as conclusões a um sólido conjunto de evidências que corroboram esses resultados.
Essa consistência e solidez é exatamente o que aquele empreendedor desavisado da pergunta nos processos de seleção quer demonstrar.
O que ele não compreende é que, para se chegar nesse nível de maturidade, é essencial entender a vulnerabilidade do modelo proposto, e por à prova essas incertezas a fim de reduzi-las, para só então poder ir para um próximo estágio de maturidade.
Admitir as incertezas do seu modelo de negócios é o primeiro passo para mitigá-las.
O teste de hipótese
Percebendo os benefícios do método científico na criação de conhecimento sólido, validado e confiável, mesmo em ambientes bastante incertos, muitas empresas inovadoras, escolas de negócio e especialistas em inovação, como a Semente, começaram a importar essas premissas observadas na ciência para o mundo dos negócios, mais especificamente para o desenvolvimento de startups.
Na Semente, apresentamos essas premissas importadas na estrutura do Quadro de Hipóteses. Esse exercício precede qualquer teste que realizamos com os nossos empreendedores, e guia toda a análise dos resultados desses testes, bem como potencializa os insights gerados a partir deles.
A estrutura é composta dos quatro elementos acima: Hipótese, Teste, Métrica e Meta. Cada um tem o seu propósito e cuidados que devem ser tomados na sua concepção.
Vamos explorar cada um desses pontos, começando pelo mais importante e mais suscetível a erros: a declaração das hipóteses.
Hipótese: são, como dito antes, afirmativas falseáveis, ou seja, afirmativas que podem ser testadas e refutadas, e são, muitas vezes, os pontos chave do modelo de negócio.
De fato, é essencial sempre estar testando a hipótese mais fundamental do seu modelo de negócios que ainda não foi validada, aquela que, se refutada, põe abaixo boa parte das premissas assumidas, e traz a necessidade de repensar toda a lógica de como seu negócio cria, entrega e captura valor.
Tão importante quanto formular boas hipóteses é saber quais testes de hipóteses.
Alguns exemplos de hipóteses bem formuladas evidenciam a importância do cuidado nesse exercício para que as próximas etapas do teste façam mais sentido:
- Grávidas, mães e mulheres buscando engravidar sofrem com a solidão e falta de informação a respeito da maternidade.
- Produtores rurais desperdiçam boa parte dos seus investimentos em excesso de agrotóxicos.
- O maior problema do comércio varejista é o estoque.
- É possível transformar qualquer vaga de emprego publicada online em um objeto estruturado e esquematizado usando inteligência artificial e aprendizado de máquina.
- A proposta de valor (A, B ou C) comunica melhor os benefícios da minha solução ao meu público-alvo.
- Uma mensalidade 50% mais barata é suficiente para que empresas migrem de uma solução personificada para uma totalmente digital.
- Se eu aumentar a minha mensalidade em 2,5 vezes, meus clientes premium vão perceber mais valor e, consequentemente, converter mais.
- O meu negócio é viável importando matéria-prima da China em pequenos lotes, a um custo viável e sem grandes riscos.
- O SMS é um canal efetivo com públicos de classes mais baixas.
Na prática, cada post-it no seu modelo de negócios deve ser formulado como se fosse uma hipótese (por que, na verdade, cada post-it num canvas é uma hipótese, até ser validada com testes de mercado).
Teste: o segundo maior desafio mais comum na validação dessas hipóteses é o desenho de testes significativos, e muito dessa dificuldade vem da má formulação das hipóteses em um primeiro momento.
Uma hipótese bem formulada, mais do que ser falseável, é quase um convite a ter sua veracidade falseada. Ainda assim, a engenharia por trás dos testes com o mercado pode ser complexa. Exploramos melhor uma das formas, o teste fumaça, nesse artigo.
Métrica: um bom teste só é um bom teste quando as variáveis importantes estão bem isoladas, e podem ser facilmente medidas.
Nesse exercício é essencial se perguntar:
Que indicadores (qualitativos, como declarações, ou quantitativos, como número de pessoas que executaram uma determinada ação) validam que a hipótese declarada é verdadeira?
Quais indicadores invalidam essa mesma hipótese?
O que eu preciso testemunhar para conseguir chegar numa conclusão?
Mais: como extrair esses indicadores das experiências?
Meta: por fim, muito ligado ao desenho das métricas está o desenho de uma meta, ou seja, com qual valor desse indicador eu me sinto confortável o suficiente para reconhecer essa hipótese como minimamente validada, e assumir o próximo pacote de risco?
Nenhuma das reflexões trazidas aqui são superficiais, supérfluas ou levianas. Idealmente, essas perguntas geram discussões e reflexões profundas nos empreendedores acerca dos negócios que eles estão modelando.
Isso faz com que fique evidente a necessidade de desenhar testes de hipóteses significativos, e as evidências colhidas nesses testes trazem informações essenciais para a tomada de decisão dos rumos que o negócio vai tomar.
Um bom empreendedor é ponderado, não é cegamente confiante no seu negócio, sabe dos riscos e assume eles na medida certa, e na hora certa.
O problema do apelo à autoridade
Carl Sagan, discorrendo sobre algumas das principais teorias da conspiração dos anos 90 afirma que: “alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias”.
Todas as hipóteses usadas como exemplo no item anterior são, em algum nível, extraordinárias, e o quadro de teste de hipóteses também é uma ferramenta poderosa contra duas das principais armadilhas do mundo empreendedor: startups de power point e a autoridade de gurus.
O primeiro é brilhantemente descrito no documentário Fyre Festival (disponível na Netflix): são aqueles negócios contados com uma história cativante, empreendedores inspiradores, projeções extraordinárias, um design excepcional de apresentação, promessas de se estar presenciando a criação do próximo grande unicórnio, e nada mais do que isso.
Na realidade, não passa de uma construção extremamente coerente, feita dentro de um escritório, por um punhado de cabeças pensantes, sem conexão alguma com a realidade e com o mercado, e que falha em validar suas hipóteses mais básicas, tratando elas como se fossem verdades absolutas.
Esses argumentos costumam ruir quando questionados sobre a solidez da validação executada:
- Quais as evidências que embasam as afirmações feitas aqui?
- Posso ver essas evidências e avaliar a confiabilidade desses dados?
- Como esses dados foram extraídos do público?
- Será que não há nenhum viés na forma com que eles foram coletados?
O segundo problema deriva de uma falácia já a muito conhecida na filosofia e no pensamento epistemológico, mas que persiste até os dias de hoje, seja em discussões de bar, seja nas propagandas que vemos na internet, seja nos mais altos debates políticos e científicos: o apelo à autoridade.
Basicamente essa falácia reside na ilusão de que alguém, por ter tal cargo, ter realizado tais feitos, ou ter tal instrução deve estar certo, e, portanto, não precisa apresentar as evidências que embasam seu argumento, apenas sua opinião é o suficiente.
A questão é que autoridades já estiveram erradas no passado, e as consequências desses erros costumam tomar a proporção do seu nível de autoridade.
O filme The Big Short (A Grande Aposta) ilustra o que acontece quando grandes bancos, instituições que transmitem muita segurança e confiabilidade, subestimam seus riscos e se apoiam demasiadamente na sua própria reputação.
Vejamos uma situação: um jovem empreendedor que está iniciando uma startup no mercado de tecnologia para a educação faz a afirmação extraordinária de que “o futuro da educação é totalmente digital”.
A banca diversa presente começa uma fervorosa discussão de dois pontos de vista contrários. Em quem devemos acreditar, no investidor anjo que concorda com o empreendedor, ou no gestor sênior de uma empresa tradicional que diz acreditar que o problema da educação é comportamental?
A resposta é que, a priori, não devemos dar como certa a opinião de nenhum dos dois (ou três) lados.
Aquele que apresentar o conjunto de evidências mais sólido daquilo que afirma é quem tem o argumento mais consistente, e tem muito mais chances de estar mais próximo da verdade do que aquele que embasa seus argumentos apenas nas suas opiniões.
2 comentários em “Teste de hipótese: a ciência por trás dos negócios inovadores”
Ideias sempre são bem vindas, mais porém
colocá-las em prática ,planejalas fazer sair do papel e desafiou.
Obrigada pelo conteúdo agregador!